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missionaria rita delfino

missionaria rita delfinoALTARES DOMÉSTICOS, Affonso Romano de Sant’Anna, Coluna Cultura, Correio Braziliense, 23/04/2008

“O altar é uma exigência simbólica dos humanos. Está dentro e fora das igrejas. Remetem para uma ideia de centro e para cima. As pirâmides são espécie de altar. O altar é um diálogo com o imponderável.”

Em princípio, isto é uma simples crônica. Mas, pode ser transformada numa densa tese universitária. Estou lhes falando de altares – coisa meio arcaica, mas estou falando também de nossa alucinada cultura eletrônica. Vou me referir ao rádio e à televisão, que foram durante muito tempo o altar em torno do qual a família congregava. O altar é uma exigência simbólica dos humanos. Estão dentro e fora das igrejas. Remetem para uma ideia de centro e para cima. As pirâmides são espécie de altar. O altar é um diálogo com o imponderável. As pirâmides são enormes altares ao ar livre. No México, nos dias de finados, num dos cômodos da casa, ergue-se um altar coberto de frutas e comidas para os mortos familiares.

Quando era menino, as casas de classe média e burguesas tinham uma sala de visitas. Esse ambiente ficava fechado, só era aberto quando vinham tios e convidados especiais. Receber visita era um ritual. E nas paredes havia retratos de parentes mortos, com aqueles bigodes, chapéus, aquelas poses e olhares nos espiando da eternidade. Os mais ricos tinham retratos solenemente pintados a óleo. Aquela sala especial era o recinto sagrado da família. Havia silencia ali e até os móveis ritualizavam reverência.

Com o amesquinhamento moderno do espaço doméstico, as salas de visitas foram se extinguindo. De repente, apareceu um visitante que veio para ficar: o rádio. Ele também falava conosco, trazia notícias de longe. Mas, com seu surgimento, houve um deslocamento simbólico. O rádio foi posto na sala de jantar, no meio da vida; entronizado num móvel especial. A família unida em torno da mesa, numa santa ceia profana, assistia piamente às lagrimosas novelas na hora do almoço e do jantar. Embora cada membro da família pudesse ter seu programa favorito, o rádio estava ali com sua força cêntrica, era um altar em torno do qual até os vizinhos vinham se reunir.

Com o surgimento da televisão, houve apenas uma substituição do objeto. Uma troca metonímica. Mas, o altar continuou congregando. Dizia-se, no entanto, que a família não mais conversava, não mais externava seus conflitos na terapia de grupo que era a hora do almoço e do jantar. Ficavam todos ajoelhados diante desta deusa terrível. Deu-se, então, que com o crescimento econômico e a fragmentação crescente da família, o altar se moveu. Cada membro da família passou a ter uma tevê em seu quarto, um altar próprio para os próprios ritos. Dizem que isto incrementou a desagregação familiar.

Aí surgiu o computador. Pensava-se que fosse simplesmente competir com a máquina de escrever e com as canetas e mata-borrões. Mas, surpreendentemente, surgiu a internet e a questão do altar tornou-se bem complexa. Poder-se-ia dizer também que a internet virou uma espécie de janela, de plano de fuga, de túnel por onde se escapa e se viaja, rompendo os muros do próprio lar. Mas, essencialmente, o computador e a internet são um novo altar. Muito mais pessoal que os anteriores e instalado em diversos cômodos da casa. Teria ocorrido, então, uma descentralização do rito. Não mais a sala de visitas que só se abria em ocasiões especiais, não mais a família (e vizinhos) na sala em torno do rádio e da tevê. Agora, cada um na sua (ou no seu altar).

Mas a coisa, semiologicamente, radicalizou-se ainda mais. O computador e a televisão se fundiram se casaram. E mais: apareceu um terceiro elemento inovador: o celular que é ao mesmo tempo telefone, computador, MP3 (antigo toca-discos) e televisão. Com a vantagem de ser um altar móvel, que se leva para o avião, para o piquenique, para a praia, enfim, um “duplo” indispensável, a segunda natureza do ser humano.

Nesta perplexidade de crentes-descrentes estamos. Redes invisíveis nos unem planetariamente. A igreja está em nossas mãos, é portátil, está em todas as partes e em lugar nenhum. Pensamos frequentá-la, mas ela é que nos frequenta, já que o ”meio é a mensagem”.

Há uns 40 anos, Drummond fez um estranho e premonitório poema, Ao Deus Kom Unik Assão, que lembro ao final desta crônica, mas que deveria ser epígrafe na tese sobre os “altares da pós-modernidade”, que algum leitor escreverá. No final, vendo o paradoxo em que a sociedade da comunicação se metera, ele indagava quem nos salvaria da “inkomunikhassão”.



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